Isabela Nunes é estudante de Letras na Universidade de São Paulo e colunista da Revista Fina. Nas horas vagas, tenta transformar sua paixão por cinema e literatura em palavras.
Have you, gentle reader, ever experienced anything that so completely permeated your heart, your mind and your thoughts that it supplanted all other notions?
— E. T. A. Hoffmann, “The Sandman”
All the information I have about myself is from forged documents.
— Vladimir Nabokov, “Despair”
Com Jean-Paul Richter e E. T. A. Hoffmann, o romantismo alemão trouxe ao palco da literatura uma figura curiosa: o doppelganger. Tema de muitos romances desde então, como O duplo de Dostoiévski ou O Homem Duplicado de Saramago, o duplo é um desses casos interessantes em que o literário antecipa ou desvela bizarrices secretas sobre o funcionamento da mente humana. Independentemente do século em que apareça, o motif das histórias de duplicação (quase tão antigas quanto o próprio homem) se ancora na multiplicidade escondida bem no centro de nosso frágil entendimento de nós mesmos e revela a estranheza das coisas que podemos conjurar quando o Eu não encontra a totalidade de si.
“O que, exatamente, é o duplo?”, talvez você queira saber antes de começarmos propriamente, uma vez que os doppelgangers já há muito abandonaram o rol fantástico da cultura popular para dar lugar a outras figuras do grotesco e do gótico, como vampiros e zumbis. Mas colocar-me essa pergunta é um tantinho capcioso e talvez tenha pouca função além de dar liga narrativa a essa pobre tentativa de análise, porque eu mesma não sei se há uma resposta satisfatória e, se por um milagre houver, sei menos ainda se consigo condensá-la. O duplo é um fantasma, uma quimera, um monstro, a cauda que perseguimos em círculos e círculos como se fôssemos bestas: é o assombro do Eu diante do mistério de si. Podemos tentar sistematizá-lo, forçá-lo por entre golpes e chutes a caber nas frágeis amarras da linguagem, dizer: isto é o duplo, aqui ele está, aqui o reconhecemos, mas a terrível sombra que ele joga desde tempos remotos [1] sobre as ingênuas fantasias humanas de controle e autonomia pertence a um campo incognoscível: esse vasto mar composto pelos ecos de nossa mente que, desdobrando-se sobre si mesmos ad infinitum, recebem o nome de “subjetividade”. Os terrores do duplo, só entende quem os sente, e aí está toda a capciosidade da pergunta que fiz: a resposta verdadeira só é possível se se desvela o duplo de modo visceral, e nenhuma análise fria é capaz de transmitir para o coração aquilo que, nesse abismo enferrujado entre o que sentimos e o que falamos, só se pode fazer ouvir pela razão — com todos os problemas de tradução que isso implica.
Mas se só dispomos da razão para tentar entendê-lo através dos meios baixos da linguagem, podemos bem usá-la e dispor de todo seu arsenal: bibliografias, categorias, exemplos, evidências científicas, encadeamentos lógicos, reciclagens do que um dia foi dito antes e muito melhor por pessoas mais inteligentes que nós. Felizmente, não fui a primeira a me fascinar (e me aterrorizar) com a figura do duplo. Freud, por exemplo, o usou para ilustrar o que chama de Unheimliche (infamiliar): aquilo que é ao mesmo tempo estranho e familiar, como ver uma réplica da casa em que você cresceu em uma cidade estrangeira. Ele descreve a experiência do duplo da seguinte maneira:
[Trata-se do] aparecimento de pessoas que, por causa da mesma aparência, devem ser consideradas como idênticas; [e do] incremento dessas relações por meio da transmissão dos processos psíquicos de uma dessas pessoas para a outra – o que deveríamos chamar de telepatia –, de tal modo que uma se apropria do conhecimento, do sentimento e das vivências da outra; (…), ou seja, duplicação do Eu, divisão do Eu, confusão do Eu – e, enfim, o eterno retorno do mesmo… [2]
Fora da psicanálise, John Herdman nos oferece outra tentativa de definição: o duplo é um “segundo eu, ou um alter ego, que aparece como um ser distinto e separado, apreensível pelos sentidos físicos (ou pelo menos por alguns deles), mas que existe em uma relação de dependência com o [eu] original” [3]. No panorama que ele traça da história do duplo na literatura do século XIX, é possível até encaixá-lo em uma categoria mais ou menos clara: como Frankenstein e Conde Drácula, seu habitat por excelência é o horror gótico — desde O Homem da areia (Der Sandman), de E.T.A. Hoffmann, a O Médico e o Monstro (The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde), de Robert Louis Stevenson (embora seja preciso dizer que esse último é um pouquinho controverso na questão de ser-sobre-o-duplo/não-ser-sobre-o-duplo).
Mas, aqui, voltamos à impossibilidade da linguagem e da razão em chegar à essência sentida das coisas, porque nada disso nos deixa mais perto de entender o terror do duplo ou por que ele continua ressurgindo no imaginário coletivo. Talvez possamos apreendê-lo melhor se, ao invés dos pontapés das sistematizações, tentarmos apalpá-lo com os chutes da imaginação.
Suponhamos, por exemplo, que você tenha terminado um relacionamento recentemente. A coisa toda foi muito triste, e pra variar era alguém que você amava muito, e previsivelmente esse amor todo transformou-se em amargura no segundo em que você percebeu que Simplesmente Não Pode Controlar Outras Pessoas e elas inevitavelmente (e muito justamente) Vão Embora Viver a Própria Vida. Pois bem. Tarde da noite, em um daqueles muitos momentos em que a ansiedade e a insegurança e a vontade de engolir alguém atacam, você muito cuidadosamente decide investigar o que é que o filho da mãe imprestável que não te amou de volta anda fazendo com a própria vida, e descobre com horror — horror — que ele está com uma pessoa nova. Mas o asco vem menos de saber que a fila andou do que em ver com quem andou: a pessoa em questão tem o mesmo nome que você, a mesma cor de cabelo, o nariz parecido, os olhos tingidos do mesmo castanho.
As coisas agora começam a tomar uma proporção um tiquinho assustadora, e como miséria atrai miséria (como se guiada pelo fio de Ariadne até o centro de um labirinto infernal (e naturalmente nós mesmos somos tanto Ariadne quanto o fio quanto o labirinto (e também a miséria e o inferno, pensando bem))), você, tomada por uma curiosidade grotesca, quer saber mais. Pois bem. O que vê é pior ainda e te enche de ódio: vocês têm os mesmos autores preferidos, escutam as mesmas músicas, gostam dos mesmos filmes, até usam as mesmas palavras. Sem saber, você estava o tempo todo em uma competição pela própria identidade com uma duplicata de si que agora tomou seu lugar, o que te deixa numa posição um pouquinho engraçada e mais que um pouquinho desesperadora de ter que se desapegar de todas aquelas coisas e características que por anos sem conta você achou que correspondiam a você.
(Se procurarmos bem, achamos encucada bem aí toda a beleza dos relacionamentos humanos: o amor como uma aposta que, se você tiver a combinação certa de azar e burrice no jogar de cartas, te deixa sem nem mesmo o direito ao próprio Eu como prêmio de consolação. Esse aí se desfaz e se dissolve e se confunde no segundo em que se confronta com o mistério doloroso que são Outras Pessoas no Mundo e sai dando tchau, sem saber muito bem nem onde está nem para onde vai — mas não sem antes produzir todo tipo de maluquice espalhafatosa).
Esse é o mote central das histórias sobre o duplo: a cisão do Eu frente à confusão que o mundo lhe gera (e que sua falta de unidade/totalidade não pode solucionar) toma a forma um tanto bizarra de um encontro literal consigo mesmo. Esse encontro pode ter origem sobrenatural — quando a duplicata é uma figura demoníaca — ou psicológica — quando é fruto das peças que a mente humana prega em si mesma. Se estivéssemos em um conto de Hoffmann, por exemplo, poderia ser que literalmente existisse uma cópia de você andando por aí, mística e macabra, ou, caso fôssemos personagens de Vladimir Nabokov, talvez fosse mais provável que a nova namorada do seu antigo amor em verdade não se parecesse em nada com você e fosse apenas mais outra pessoa qualquer no mundo, um veículo para a insegurança, o orgulho e a dificuldade humana de proporções tragicômicas em reconhecer a corda bamba que o Eu realmente é; uma piada que a consciência devolve a nós, pobres coitados, que acreditamos não só entendê-la, como dominá-la. Seja como for, ao encontro com o duplo segue-se uma paranoia de perseguição, e os protagonistas dessas histórias geralmente são tomados por uma crença destrutiva de que os duplos querem machucá-los ou substituí-los.
A psicologia oferece, é verdade, uma explicação: o fenômeno do duplo, que, depois dos românticos alemães, descobriu-se ser tão frequente em casos clínicos quanto em literários (se não mais), é conhecido pelo nome de heautoscopia: “a experiência de ver ou sentir uma cópia do próprio corpo no espaço extrapessoal”. Nesses casos, a forma física do duplo pode nem sempre ser uma cópia exata, mas invariavelmente desperta um sentimento forte de similaridade e afinidade psicológica, causando confusão quanto à verdadeira localização do Eu ou do corpo [4]. Análises das estatísticas clínicas da heautoscopia indicam que esse é um fenômeno ligado a momentos de crise e surge como reação a tendências depressivas e autodestrutivas, sendo que sentimentos de forte desassociação, confusão e paranoia são característicos [5]. À despeito das explicações científicas, ainda prolifera na cultura popular a crença de que os duplos são seres sobrenaturais e malignos, como você pode ver aqui.
Na literatura, os dois universos se encontram e o espanto do duplo se deixa ver em todo seu auge (apesar dos meios baixos da linguagem e apesar da impossibilidade de tradução, porque literatura é mágica onde o impossível se torna possível). O mais frequente é que o duplo literário seja uma conjugação tanto do fantástico quanto do psicológico: quer seja imaginário, quer não, ele possui uma realidade palpável para os personagens das histórias, e os melhores contos — como os de Hoffmann e os de Poe — são aqueles em que as fronteiras entre o mundo real e o mundo conjurado pela mente se embaralham. Para que possamos entrar mais fundo no universo do duplo, então, sugiro olharmos para duas histórias da ficção: uma delas um pouco antiga, pertencendo à era de ouro dos doppelgangers, e outra mais recente, de modo que possamos ver como ele perdura. As histórias em questão são o conto William Wilson, publicado em 1839 por Edgar Allan Poe, e o filme Cisne Negro (2011), de Darren Aronofsky.
Em William Wilson, um narrador, aguardando a chegada da morte, conta a história da decadência ao estado de “miséria indizível” e “crime imperdoável”. [6] que levou à sua condição atual. Segundo ele, a tragédia de sua vida está relacionada a um período remoto de sua infância, no qual começa uma disputa secreta com um de seus colegas, também chamado William Wilson, cuja data de nascimento coincide com a sua. Os dois William Wilsons não são aparentados de nenhuma forma e a semelhança entre os nomes, ainda que estranha, é a princípio entendida como parte do contexto social da época, uma vez que “William Wilson” era um nome muito comum: “uma dessas denominações corriqueiras que parecem, por direito prescritivo, ter sido, por tempos e tempos, propriedade comum da multidão” [7].
Mas a similaridade entre os dois não tarda a se intensificar: o segundo William Wilson passa a imitar os trejeitos do primeiro ao perceber que isso o irrita, e o narrador nota que os dois têm a mesma altura e porte físico, apesar de também admitir que “não tinha nenhuma razão para acreditar que (…) a similaridade tivesse sido alguma vez objeto de comentário, ou sequer observada por nossos colegas” [8]. À vista disso, o primeiro Wilson é cada vez mais tomado por um sentimento ambíguo de competição, ressentimento e admiração por seu colega, cujo objetivo na disputa ele percebe como sendo “um desejo impulsivo de me frustrar, surpreender ou envergonhar” [9].
A coisa passa de estranha a bizarra quando o narrador deixa a escola da infância e, à medida em que pula de lugar a lugar, o segundo Wilson o persegue, aparecendo sempre “para frustrar aqueles esquemas ou perturbar aquelas ações que, se levadas a cabo, poderiam ter resultado em travessuras amargas” [10]. Ao fim do conto, o narrador o confronta e acaba por assassiná-lo, levando à descoberta de que era ele mesmo — ou sua consciência — quem ele havia matado.
Em Cisne Negro, o duplo aparece de forma diferente. Nina é uma bailarina dedicada que, depois de muito tempo tentando obter controle sobre seus movimentos para atingir a perfeição, recebe uma oportunidade sob os holofotes como a estrela da nova produção de O Lago dos Cisnes. A promoção na carreira, no entanto, vem com um desafio: ela deve ser capaz de dançar tanto a parte do Cisne Branco, puro e ingênuo, como a de seu gêmeo malvado e libidinoso, o Cisne Negro. Nina domina a pureza do Cisne Branco, mas a energia irreprimida de sua contraparte lhe é difícil e perigosa. Seu diretor, Thomas Leroy, a encoraja a perder-se em si mesma a fim de encontrar a perfeição no caos, e a busca de Nina por seu Cisne Negro interior ganha contornos literais e perturbadores.
Se, em William Wilson, o narrador confere uma existência física e completamente autônoma a seu duplo, em Cisne Negro a duplicação é mais complexa e elusiva. Nina vê a si mesma refletida em várias das personagens que encontra, em especial duas de suas colegas: Beth, a bailarina que ela precisa substituir para ter seu papel como estrela, e Lily, a novata que, por sua vez, pode substituí-la. Em vez de canalizar sua cisão interna em uma só figura, o mundo torna-se seu espelho e seu Eu conjura espectros de si aonde quer que ela vá. Ao final, há um confronto entre ela e seu reflexo, muito similar àquele de William Wilson, e ela imagina estar atacando sua rival, Lily, quando na verdade está atacando a si mesma.
No filme de Aronofsky, é evidente que as duplicatas são fruto da maquinação da mente de Nina, que projeta sobre uma realidade objetiva as fantasias de seu mundo interior; ou seja, não há dúvida quanto à existência concreta das pessoas que ela encontra, como Lily e Beth, e sim quanto ao significado ou extensão das ações que ela enxerga nelas. Esse tipo de duplicação produz o que John Herdman chama de “quase-duplos”:
“Quase-duplos [quasi-doubles] vêm em formas variadas, mas sempre têm uma existência independente e não-ambígua dentro do esquema ficcional. (…) [São] ‘personagens que existem em seu próprio direito, mas refletem algum aspecto interno de outro personagem de maneira intensificada’”. (HERDMAN, 1990, p. 14).
A diferença entre duplos e quase-duplos, no entanto, apenas demarca a forma com que eles aparecem fisicamente aos personagens cindidos ou ao leitor— de modo objetivo ou completamente subjetivo —, pois o lugar que ocupam na narrativa tem igual força. Em William Wilson, por exemplo, o segundo Wilson é percebido pelo narrador como sendo uma única pessoa, mas podemos ver, com um pouquinho de atenção, que talvez ele se pareça mais com os espectros de Nina do que o primeiro Wilson dá a entender.
O peso de Nina e Wilson é o difícil peso de não ser só um, de não imperar sobre o próprio corpo, as próprias vontades, os próprios desejos, de ser condenado por lei natural e imutável ao deslocamento eterno. Peso que não é só deles, mas nosso também.
Isso porque, como as duas histórias se desenrolam dentro do ponto de vista de Wilson e de Nina, algum nível de projeção fantasiosa sobre a concretude do mundo real está necessariamente em jogo. A realidade das coisas narradas chega a nós de maneira impositiva pela estrutura do conto ou do filme, que nos obriga a aceitar o que o narrador vê ou sente — em William Wilson, o narrador confere uma realidade objetiva ao seu duplo; em Cisne Negro, nós vemos o que Nina vê —, mas sabemos o tempo todo que o ponto de vista é unilateral e parcial. No conto de Poe, a projeção espectral do narrador é mais difícil de ser percebida, mas, como acontece com Nina e seus espelhos espalhados pela casa, percebemos a subjetividade da realidade que ele enxerga na maneira com que as coisas físicas e concretas chegam até ele.
Uma pista é o modo como ele descreve a escola em que cresceu e onde conheceu o segundo Wilson:
As primeiras recordações da minha vida escolar ligam-se a um casarão exótico, de estilo elisabetano, situado numa aldeia triste da Inglaterra, onde as casas eram todas de antiguidade respeitável. De fato, aquela aldeia antiga constituía o tipo próprio para excitar a imaginação (POE, 2017).
E o edifício? Que curiosa construção! Eu o considerava como um verdadeiro palácio encantado! Era um nunca acabar de desvãos, de divisões incompreensíveis. Dificilmente se poderia dizer quando nos encontrávamos no primeiro ou no segundo andar. (…) Além disso, as divisões laterais eram inúmeras, sem razão de ser, com tantas voltas e reviravoltas que a ideia que fazíamos do conjunto do edifício se aproximava da que fazíamos do infinito (POE, 2017).
A linguagem que ele emprega remete a um imaginário fantástico: “palácio encantado”, “divisões incompreensíveis”, “inúmeros e inconcebíveis” desdobramentos, casa “desconexa”, “árvores gigantes e nodosas”; a cidade caracterizada em outra passagem como “irreal” e “inquietante” [11]. Outro aspecto importante dessa descrição é a confusão espacial: a casa estende-se quase que infinitamente, dobrando-se sobre si mesma e fazendo com que pertença muito mais ao plano das ideias inexatas do narrador do que ao mundo físico. Da mesma forma, em todas as outras observações “objetivas” há certo aspecto de confusão e imprecisão.
Na noite em que deixa a escola, por exemplo, ele vai até o quarto do segundo Wilson e vê no rosto de seu colega algo tão assustador a ponto de fazê-lo abandonar o lugar para sempre. Espacialmente, ele chega até Wilson através de uma interiorização (!) gradativa: passa por uma “selva de passagens estreitas” até o “cubículo” do inimigo, encontrando-o dormindo em uma cama atrás de “cortinas fechadas” [12]. Nesse contexto, o rosto do rival assume formas que não tinha à luz do dia: “Não era assim que ele era — definitivamente não assim — na vivacidade de suas horas de vigília” [13], o que sugere uma disparidade entre as feições reais do segundo Wilson e as que o narrador percebe.
Depois que ele vai embora e se vê assombrado pelo segundo Wilson ao redor do mundo, o rival sempre aparece na penumbra, em situações incertas em que “nenhuma luz era permitida” / “a escuridão [era] total” [14] e o narrador é obrigado a mais intuir do que de fato ver seu inimigo: “nós conseguíamos apenas sentir que ele estava parado entre nós” [15]. Em Cisne Negro, Lily também aparece frequentemente sob a penumbra ou sob uma distância incerta que confunde suas feições com as da própria Nina:
Sem nada além das sombras da própria cabeça para jogar luz sobre as sombras do mundo, tanto Nina quanto Wilson acabam por projetar os próprios fantasmas sobre pessoas reais que eles conhecem. Em todo lugar que Wilson vai, seu inimigo o encontra porque é um reflexo de si mesmo que transbordou para fora do Eu. O espaço físico, concreto, com sua arquitetura e com as pessoas que a habitam, é cooptado pelos protagonistas das histórias do duplo para que vire o palco de uma disputa até a morte deles consigo mesmos.
Mas aqui nos vemos de volta ao entrave inicial, à pergunta que realmente importa: o que origina essa disputa? O que ela é? Ou, nas palavras do personagem de Poe, “Quem é [o duplo]? — de onde ele veio? — e quais são seus objetivos?” [16]. O quem do duplo é sempre paradoxal: é aquele que ao mesmo tempo eu sou e não sou; aquele que amo porque odeio e odeio porque amo; aquele que, embora seja uma extensão de mim, é meu competidor e “o arquétipo de [meu] rival em tudo” [17]. Como vimos, na psicologia o fenômeno da duplicação se associa a momentos de crise e a sentimentos ambíguos como “indecisão paralisante, autodesprezo e culpa não reconhecidos, humilhação dolorosa, solidão ou falha de autoconhecimento”; quase sempre, parece também estar atrelado a uma autopunição inconsciente por “orgulho indevido, vaidade, inveja, ambição, imoralidade e depravação” ou sentimentos de inadequação [18].
Com isso em mente, voltemos às histórias. Wilson se descreve como uma pessoa de “propensões malignas” [19], às quais seu duplo se opõe: “com que inconveniência, mas com que obséquio espectral [o duplo] se interpunha entre eu e minha ambição” [20]. O segundo Wilson aparece sempre para interromper seus planos ambiciosos e malvados com conselhos que o narrador mesmo admite que, se tivesse seguido, “poderia ter sido, hoje, um homem melhor, e portanto mais feliz” [21]. Esses planos, além de maliciosos, seguem um padrão: Wilson atrai para seus esquemas traiçoeiros apenas aqueles que são “fracos de espírito”:
… [cheguei a apostar] habitualmente como um meio de aumentar minha já enorme renda às custas dos fracos de espírito entre meus colegas de faculdade (POE, p. 429-30).
Não é coincidência, então, que seu duplo desperte nele o mesmo sentimento de fraqueza que, despertando nos outros, faz ele sentir um “triunfo total” [22]:
Eu sempre me submetera até então, de uma maneira covarde, à sua imperiosa vontade. Habituara-me a acatar com todo o respeito o elevado caráter, a grande sabedoria, as ilusórias onipotência e onipresença de meu homônimo. Acatava-o com um sentimento misto de terror e de admiração, graças a certos aspectos de sua maneira de ser e a certos privilégios que ele possuía e que me davam uma ideia de fraqueza e impotência de minha parte (POE, 2017).
Além disso, o segundo Wilson surge sempre depois que o narrador comete “mais que profanações habituais” [23], com “admoestações solenes” [24] que se assemelham muito a uma punição. Assim, os “sussurros” do duplo de Wilson o assombram com a força de uma voz interna — a voz da consciência. Ao mesmo tempo, sem conseguir tomar responsabilidade pela vileza de seus próprios atos, ele a transfere à duplicata: “Eu gostaria que [meus semelhantes] acreditassem que fui, em certa medida, escravo de circunstâncias além do controle humano” [25].
Com Nina, há um movimento contrário: seu “duplo” não é a contraparte de sua natureza malvada, mas de sua pureza e constrição. Assim como o Cisne Negro é para o Cisne Branco, os espectros de si que Nina enxerga nos outros a convidam a libertar uma versão dela mesma que existe sem amarras, livre, libidinosa, maliciosa, perigosa. “Viva um pouco”, lhe dizem Leroy e Lily. A busca pela escuridão na dança se embaralha com a descoberta da escuridão em si mesma, e quanto mais Nina vai em direção ao Cisne Negro e desperta sua sexualidade, seu desejo e suas pulsões, maior se torna sua paranoia e o espraiamento de sua subjetividade para fora de si e em direção aos outros.
Da mesma forma que Wilson é dominado por sentimentos ambíguos de admiração e medo por seu duplo, também Nina se relaciona de forma contraditória com Beth e com Lily: ora as teme, ora as menospreza, ora as admira. Especialmente com Lily, as fronteiras entre a afeição e o ressentimento se empalidecem, chegando mesmo a se confundir com atração sexual, mas a rivalidade está no centro dessa relação confusa: “Ela está atrás de mim, ela quer me substituir”. Já que os “duplos” de Nina são mais evidentemente uma fragmentação do Eu que o segundo Wilson de Poe, eles ilustram melhor a paranoia de perseguição: Nina teme seus duplos porque teme a si mesma. (Assim como Wilson. Assim como os personagens de Hoffmann, de Nabokov, de Dostoiévski. Assim como todo mundo). Não se trata apenas de um Eu cindido, mas de um Eu aterrorizado e, porque aterrorizado, em guerra consigo mesmo.
Tudo que acreditamos ser Eu e tudo que acreditamos ser Outro não passa da mentira mais bem alimentada da modernidade: Eu e Outro não existem; é o ego, e não a esperança, o pior dos delírios humanos.
É o temível abismo entre a vontade e a ação que gera o delírio desses personagens: Wilson quer, mas não consegue ser bom; Nina quer, mas não consegue ser má. Ambos estão às voltas com uma vontade de controle sobre os próprios impulsos que lhes foge. Na companhia de dança, Nina é a bailarina que acerta os movimentos porque os preenche com precisão, dedicação, controle. Wilson, por sua vez, desde muito cedo se percebe como caprichoso e tempestuoso: “Tornei-me obstinado, viciado nos caprichos mais selvagens e vítima das paixões mais ingovernáveis” [26]. Condenados a ser aquilo que são, os dois personagens — e a maioria daqueles que se veem duplicados — são unidos por esse medo irracional de suas sombras: seja daquilo que reprimem, seja das emoções que lhes afloram a pele; invariavelmente, da falta de domínio que o Eu tem sobre si mesmo.
Nesse dilema, coibidos pela ambiguidade entre o desejo de livre-arbítrio e o estado de escravidão a que estão necessariamente sujeitos pela irracionalidade caótica que ser um Eu pressupõe, Wilson e Nina projetam seu conflito para fora de si e lhe dão ares de inevitabilidade, de destino. Dilacerado por suas vontades e por seu “temperamento imaginativo e facilmente excitável” [27], Wilson descreve seu duplo como parte das “advertências ambíguas do destino” [28], ou como seu “destino mau” [29], ou mesmo como um “oásis de fatalidade em meio a uma selva de erros” [30]. Da mesma forma, Nina pressagia sua tragédia muito antes de ela acontecer, como se fosse predeterminada: o filme abre com um sonho no qual ela se imagina dançando o Cisne Branco, antes de sequer saber da nova produção de O Lago dos Cisnes, e ela acorda na manhã seguinte já com as marcas estranhas que, no clímax da narrativa, se transformarão em suas asas de Cisne Negro. Segundo Herdman, o duplo frequentemente associa-se a essas noções de destino e de livre-arbítrio:
[O duplo se torna] a ideia de um destino inescrutável com operações contra as quais [os personagens] são, em última análise, impotentes, [e eles] reagem a essa consciência de maneiras que asseguram que suas previsões serão autorrealizáveis. (HERDMAN, 1990, p. 98).
A cisão interna se extrema (e, pra bem ou mal, se resolve) através da submissão a essa figura de fatalidade e tragédia em que se transforma o duplo. Assim, tanto no filme de Aronofsky quanto no conto de Poe, o assassínio da figura duplicada ironicamente acaba por resultar na total falta de controle: Nina se rende ao Cisne Negro, e Wilson também é deixado sem amarras que contenham seus desejos irracionais. É que matar o duplo corresponde a matar a ilusão do Eu:
Em mim tu existias — e, na minha morte, vê por essa imagem, que é a tua própria, o quão completamente tu te matastes. (POE, 1850, p. 418).
O peso de Nina e Wilson é o difícil peso de não ser só um, de não imperar sobre o próprio corpo, as próprias vontades, os próprios desejos, de ser condenado por lei natural e imutável ao deslocamento eterno. Peso que não é só deles, mas nosso também. Dentro da gente tem um vazio a que tentamos dar nome, forma e cara chamando de Eu e rogando por segurança, como se num rio violento cujas ondas sempre desaguam do lado de fora, imparáveis. E na obliteração que é o dissolver-se na correnteza si mesmo, eis o duplo, em todo o seu terror e toda a sua glória, fantasmático, quimérico, monstruoso, semeando em corações desavisados toda a estranheza de ser. Em seu olhar, vem encerrado o prenúncio da morte dessa cara cansada do Eu, morte matada de agonia, mas que, mais do que pesadelo, é imperativo pra poder se olhar na cara de verdade.
Em Ecos da mente, Richard Powers diz com muita razão: “dos eus como o eu se descreve, ninguém [tem] um”. Em meio ao choro e ao apelo cansado de quem quer entender a vida mas não cabe na própria medida, o duplo é um mensageiro revelando o quanto somos impotentes. A paúra ardida que ele desperta vem do fato de que, ao contrário de seus contemporâneos do século XIX, os monstros e os vampiros e os fantasmas, ele realmente existe. Existe porque está em nossas rivalidades sem sentido, nas competições frívolas, nas réguas quilometricamente imaginárias que usamos para medir quantas e tantas e infindas comparações com os outros; porque está nas brigas de ego, nas noites de ver-o-que-o-ex-namorado-anda-fazendo, na inveja, na admiração, na vaidade, no orgulho, em todos esses sentimentos que são sempre em-direção-a, que não existem sozinhos, que são prova indiscutível das outras mentes em eterna valsa com as nossas; está na vontade não-dita de ser outra pessoa, no peito inflado que recebe um elogio, na amargura aguda de ter uma consciência que mostra o tempo todo que não coincide consigo mesma. Em maior ou menor grau: que seja, não importa; ninguém está a salvo. Tudo que acreditamos ser Eu e tudo que acreditamos ser Outro não passa da mentira mais bem alimentada da modernidade: Eu e Outro não existem; é o ego, e não a esperança, o pior dos delírios humanos. Há um e outro, somos sempre dois, sempre a cópia de alguém, sempre a cópia de nós mesmos, nunca constantes, nunca com uma essência imutável, nunca com algo que se possa chamar identidade, nunca com coordenadas geográficas que indiquem como localizar esse Eu ausente que tanto queríamos que fosse mais que um sonho perdido. Sempre, sempre, congelados nesse paradoxo permanente que é a morada do duplo.
Powers resumiu toda a ladainha como ninguém em uma única metáfora:
[Ele] viu o pássaro saindo cambaleante, ferido: um grande cardeal macho que nas duas últimas semanas andara atacando seu reflexo na janela, pensando ser ele próprio um intruso em seu território (POWERS, 2013).
O drama infindável da humanidade bem aí, resumido nesse pobre pássaro burro. Não passamos das vítimas perpetuamente confusas dessa fatalidade autoinfligida e arbitrária que é a incapacidade de saber quem se é e quem são os outros e querer saber mesmo assim. Somos Orfeu que não consegue evitar olhar para trás para ver desaparecer não Eurídice, mas os próprios contornos — e que fica lá, no escuro, pela eternidade, tateando em busca de perímetro. Mas não há contorno, perímetro, limite, fronteira, âncora. Se nosso Orfeu não olhasse para trás, pouco faria diferença; o olhar só mataria a ilusão, como o fez Wilson, como o fez Nina.
Contra todos os nossos gritos por razão, ordem e domínio, o duplo chacoalha os ombros e aponta para nossa estupidez profunda, nossa profundidade estúpida, dizendo: como você não vê? Contra nosso nó no peito, nosso egotismo, nosso anseio desesperado por ver cada coisa em seu lugar, ele apenas gargalha, um riso que ecoa no fundo na garganta, e diz em meio a toda a desordem do mundo que ser alguém é invadir e ser invadido todos os dias, é ser caça e caçador, soluto e solvente, mesmo e outro; simples assim, nunca ou, sempre e. E, ao fim e ao cabo, depois que ele se desfaz sobre nós e nos desnuda, nos resta pouca escolha a não ser aceitar a verdade horrível do que realmente somos: uma terra-de-ninguém esburacada, conspurcada e ensandecida que não começa nem termina e que jamais pode ser realmente nossa.
REFERÊNCIAS
ARONOFSKY, Darren et al. Black Swan. Fox Searchlight Pictures, 2010.
DIEGUEZ, Sebastian. Doubles Everywhere: Literary Contributions to the Study of the Bodily Self. In: Literary medicine: Brain disease and doctors in novels, theater, and film, v. 31, p. 77-115, 2013.
FREUD, Sigmund. O Infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019): Seguido de O Homem da Areia de E.T.A. Hoffmann. Autêntica, 2019.
HERDMAN, John. The double in nineteenth-century fiction. Londres: MacMillan Press, 1990.
POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias. Companhia das Letras, 2017.
____________. “William Wilson” (reprint). In:The Works of the Late Edgar Allan Poe, 1850, p. 417-436.
POWERS, Richard. Ecos da mente. Rio de Janeiro: Editora Record, 2013.
RANK, Otto. The double: A psychoanalytic study. UNC Press Books, 2012.
[1] Cf. RANK, 2012.
[2] FREUD, 2019.
[3] HERDMAN apud DIEGUEZ, 2013, p. 79.
[4] Idem, p. 89.
[5] Idem, p. 84.
[6] POE, 1850, p. 417.
[7] Idem, p. 421.
[8] Idem, p. 424.
[9] Idem, p. 422.
[10] Idem, p. 434.
[11] Idem, p. 418.
[12] Idem, p. 426, grifo meu.
[13] Idem, p. 427.
[14] Idem, p. 428.
[15] Idem, p. 432.
[16] Idem, p. 434.
[17] RANK, 2012, p. 73.
[18] DIEGUEZ, 2013, p. 84.
[19] POE, 1850, p. 418.
[20] Idem, p. 433.
[21] Idem, p. 425.
[22] Idem, p. 418.
[23] Idem, p. 428.
[24] Idem, p. 429.
[25] Idem, p. 417.
[26] POE, 1850, p. 418.
[27] Idem.
[28] Idem, p. 419.
[29] Idem, p. 433.
[30] Idem, p. 418.
Imagem: Cena do filme “Cisne Negro” (2011).